22 de maio de 2007

O jogo político e a morte do espião russo

(Original aqui)

Tem muita história no mais recente caso de espionagem entre Londres e Moscou. A rivalidade dos serviços secretos dos dois países talvez seja a mais antiga da era moderna -ela chega aos exploradores (hoje eles seriam chamados de "special troops") do Império britânico e do Império russo que participaram da célebre corrida pelo controle da Ásia Central no século 19, conhecida como “great game”.

Eram aventuras que hoje parecem românticas: os exploradores/agentes dos dois lados movimentando-se em camelos e mulas, disputando favores de chefes e líderes tribais nos lugares mais remotos daquela época, sobretudo ao longo da rota da seda. Alguns dos heróis da literatura russa do período são os oficiais czaristas que chegaram ao “teto do mundo”, como ainda são chamadas as montanhas ao Norte do Afeganistão. Do lado britânico, são os oficiais de Sua Majestade tratando de defender os acessos à Índia, a jóia da coroa.

Depois da Revolução Russa de 1917 os britânicos passaram a ter grande vantagem sobre os bolchevistas. Entre os refugiados russos “brancos” (em oposição aos “vermelhos”) que foram para Londres estavam alguns dos melhores criptógrafos do regime czarista. Os russos sempre tiveram grande tradição em matemática, e esses criptógrafos ajudaram os britânicos não só a quebrar sem dificuldades os principais códigos usados pela Internacional Comunista (dirigida por Moscou) na sua rede mundial de agentes, mas, sobretudo, fundaram uma escola de decifradores que ajudou decisivamente o esforço de guerra dos britânicos poucos anos depois, contra os alemães.

O troco soviético foi um dos mais sensacionais do século 20. Na segunda metade da década de 40, os serviços secretos de Moscou criaram na Inglaterra uma rede que levou (junto com a rede americana) aos segredos das bombas atômica e de hidrogênio das duas principais potências ocidentais. Até mesmo a contra-espionagem britânica estava “contaminada”, algo que Londres só conseguiria igualar quando a URSS estava em seus extertores e pelo menos dois desertores da KGB fugiram para Londres levando consigo extensas listas de agentes soviéticos.

Na Guerra Fria, União Soviética e Reino Unido praticaram expulsões em massa de diplomatas acusados de espionagem -em 1971, foram 105 expulsões de Londres de uma só vez. Durante algum tempo os líderes soviéticos achavam que o MI-6 (o serviço secreto exterior britânico) era capaz de ouvir suas conversas. Mikhail Gorbachev tinha algo em comum com Stálin: ele e o ditador detestavam a vista do Kremlin, onde trabalhavam, que dava para a embaixada do Reino Unido do outro lado do rio, com a bandeira britânica tremulando. Margaret Thatcher convenceu Gorbachev de que não era necessário mudar a embaixada britânica de lugar em Moscou -e que o MI-6 não estava ouvindo conversas dentro do Kremlin.

Curioso é o fato de que a subida ao poder de Vladimir Putin, um ex-agente da KGB na Alemanha Oriental, no ano 2000, criou um período de harmoniosa distensão com Tony Blair, o primeiro que o novo homem forte do Kremlin convidou para assistir a uma ópera em São Petersburgo. Yeltsin já havia admitido que a família real russa (ligada por fortes laços de parentesco à família real inglesa) fora um crime praticado pelos líderes bolchevistas, e também a dívida externa com Londres que fora repudiada pelos comunistas.

Mas dois eventos mudariam completamente a nova relação entre Londres e Moscou.

O primeiro foi a postura de Blair durante a invasão do Iraque. Chirac e Scröder uniram-se a Putin na condenação à guerra declarada por Bush, de quem Blair chegou a ser chamado de “poodle”. E o segundo foi o fato de Londres ter se transformado, na mesma época, num poderoso ímã dos novos super-super-super-ricos russos, entre eles Boris Berezovski, um dos novos “oligarcas” que tivera o atrevimento de desafiar o poder político de Putin. Além dos russos e sua gastança (que explica boa parte da bolha imobiliária de alto luxo nos bairros nobres do Norte de Londres), os britânicos deram asilo a Akhmed Zakayev, um porta-voz dos separatistas chechenos, a guerra que tornou Putin tão popular entre os russos.

Aqui se registra uma diferença de mentalidade que explica bastante algumas das profundas divergências entre os dois países. O direito à propriedade e os direitos civis são dois bens que estão acima de qualquer governo em Londres. A cidade atrai tantos novos ricos (já era o lugar preferido de bilionários árabes) pelo fato de que a lei britânica protege a propriedade. E o direito de asilo é decidido por juízes independentes de determinações do governo. Nada parecido existiu na Rússia do século 19, no império soviético e continua não existindo agora.

Mas russos e ingleses tem algo em comum, para se utilizar aqui uma categoria nada científica e totalmente subjetiva: um certo cinismo, bem mal disfarçado nas relações internacionais. E esse cinismo reza que o assassinato político não pode ser praticado à luz do dia, diante dos holofotes da mídia, e muito menos no quintal do outro. O “great game” hoje parece, romantizado como foi, um “gentleman’s game”, com regras respeitadas e, principalmente, preservando a dignidade do adversário. Não foi.

Hoje o “great game” não é por ideologia, mas por poder e dinheiro. Quem se acha na defesa é Putin, obcecado pela idéia de que a Rússia é vítima de um cerco, e que as potências ocidentais precisam aprender a não tratá-la como país de segunda categoria. Tudo o que ele fez nos últimos dois anos -do tratamento aos vizinhos próximos à demonstração de que a Europa depende do fornecimento de energia da Rússia- é um esforço de restaurar influência, poder e, não se pode esquecer, prestígio.

É um notável esforço, que está dando certo. Diante disso, que mal há em eliminar um espiãozinho?


Nenhum comentário: