2 de julho de 2007

Bush, Putin e o xadrez diplomático

(Original aqui)

Se um cardápio composto de peixe espada como prato principal e uma torta de framboesa logo depois ajuda numa conversa é questão de gosto gastronômico. Foi a recepção culinária oferecida nesta segunda feira (2) ao presidente russo Vladimir Putin nos domínios pessoais de George Bush pai e filho em Kennebunkport, na costa do Atlântico.

Os russos gostam de peixe – em geral, defumado e com muito sal – mas preferem vodca para amaciar as coisas. Vodca, como se sabe, não funciona mais na segunda vida de George W. Bush, e Putin parece menos russo do que Yeltsin quanto ao consumo de destilados. Em compensação, todo russo como Putin reconhece o valor de ser recebido numa “datcha” – uma residência de campo particular e exclusiva.

Bush deu a Putin um trato pessoal dos mais raros, para lidar com assuntos impessoais e de alcance histórico muito maior que os dois personagens em questão. Os dois países não vêm se entendendo há bastante tempo sobre uma série importante de temas. A discórdia que provoca as principais manchetes – a instalação de um escudo antimísseis americano em países europeus próximos à Rússia – nem é o ponto mais urgente (o sistema só entraria em funcionamento na próxima década), mas é o que melhor ilustra o profundo desentendimento entre Washington e Moscou.

Quem se debruça sobre os livros dedicados ao período imediatamente após a Segunda Guerra Mundial percebe logo que um dos problemas centrais dos inícios da Guerra Fria foi a dificuldade dos americanos em compreender como a União Soviética (a Rússia, para simplificar) encarava seu lugar na Europa. Alguns autores chegam a afirmar que a Guerra Fria começou ainda antes da Segunda Guerra – 1941 a 1945 foi apenas uma pausa – e ganhou impulso com a entrada dos americanos no cenário europeu.

Discussões históricas à parte, é óbvio que dirigentes russos e dirigentes americanos pensam história de maneira bastante diversa. A projeção do poder americano no Oriente Médio ainda é tolerável por Moscou, mas o espaço europeu logo adiante da Rússia é entendido como território vital para o país desde pelo menos as conferências de paz de 1815. Se alguém acha que isso faz muito tempo para os russos, conhece pouco a alma deles (retratada de forma magistral, há quatro anos, por Orlando Figes em “Natasha's Dance”).

A questão dos escudos antimísseis é para Putin (ou qualquer outro no lugar dele) estratégica no seu sentido mais amplo. É aceitável para os russos uma potência de projeção global como os Estados Unidos (sobretudo em termos de projeção do poder naval). Difícil, para eles, é tolerar um cinto em torno do país que pode ser apertado a qualquer momento.

Os russos são, como todos sabem, grandes enxadristas também, e a proposta que Putin colocou na mesa neste fim de semana talvez não seja séria, mas é um grande lance. Se os Estados Unidos dizem que o escudo antimíssil é para se defender de ameaças do Oriente Médio (leia-se Irã) e seus propósitos são pacíficos, que seja, então, instalado em território da... Rússia. Moscou e a Otan estariam envolvidos num projeto comum, disse Putin.

Os russos parecem também ter escolhido o momento certo para bater o pé frente aos americanos. O desastre do Iraque e a pressão internacional em torno dos problemas do meio-ambiente são exemplos eloqüentes dos limites da política unilateralista americana (da qual, por sinal, já pouco se fala). Fazem parte também nas complicadas negociações sobre mísseis países europeus que há muito tempo já não enxergam os Estados Unidos como garantidores de sua existência – ao contrário, alguns acham até que os americanos complicam bastante as coisas.

Se alguém disse a Bush que a Rússia andava amuada com a falta de atenção e que uns tapinhas nas costas de Putin poderiam amaciar um acordo – enganou-se. Há um ar inconteste de déjà vu nisso tudo. Para lembrar exemplos históricos de maior estatura, sugere os tempos em que Roosevelt se encantava e achava que tudo podia ser bem resolvido com Uncle Joe, Stalin.

Quando se tratava dos interesses da mãe Rússia, o Czar Vermelho, como também é tratado, não se comportou de maneira diferente que seus antecessores aristocráticos. Nem seus sucessores. Nem Putin.


Nenhum comentário: