2 de julho de 2007

Visões de mundo

Nos últimos dias, envolvi-me em uma pequena "polêmica" com minha querida amiga Kamila. Como sempre, estávamos debatendo sobre questões filosóficas, pois ela havia dito que Platão e Kelsen têm posições semelhantes sobre o conceito de justiça. É claro que não é correto falar isso e, após várias mensagens, ela finalmente deu o braço a torcer, hehehe...

O motivo de não ser possível falar isso é muito simples: ambos os filósofos tinham visões de mundo totalmente diferentes.

Platão viveu em uma época na qual não existia o Deus cristão; na qual o todo era dado pelo cosmos, e não por uma "entidade" superior; no qual o todo vinha antes do indivíduo. Isto, dentre outras características que não vou escrever agora porque estou com fome. Kelsen, por sua vez, viveu em uma época na qual o Deus cristão estava "firme e forte", atuando na mentalidade dos indivíduos; na qual o todo é dado por este mesmo Deus; no qual o indivíduo vem antes do todo; na qual o mundo era visto de maneira totalmente diferente à de Platão.

Para terminar esta pequeníssima postagem, vou colocar abaixo um texto falando sobre Kelsen que, coincidentemente, li hoje de manhã. É meio grande, mas vale a pena para mostrar a ridicularidade de Kelsen no que diz respeito à justiça.

"(...) Verifica-se, na literatura jurídica, grande diversidade de autores que tangenciam a temática da política somente como uma questão lateral do fenômeno jurídico. Nessa análise, na esteira da filosofia política, o pudor na discussão dos meandros do poder decorre, entre outros fatores, do fato de que, apesar de as ciências jurídicas serem caracterizadas como ciências humanas, estão isentas de analisar aspectos 'externos' ou 'exteriores' às peculiares preocupações. Essa cultura da temeridade diante da temática do poder é fruto de todo um processo de alheamento do Direito, e de sua respectiva ciência, das preocupações ideológicas, éticas, morais, sociais, econômicas que seriam subjacentes ao que se pode qualificar como 'jurídico'.

"Se a constatação de que o Direito está imbricado ao poder parece algo quase consensual e inegável, atualmente, e separar uma coisa da outra pareceria tarefa injustificável, houve momento histórico em que isso não se poderia acreditar como experiência científica e, a julgar pela visão de mundo do positivismo jurídico, não se poderia admitir como científico o que não está dotado de método próprio e objeto autônomo. Assim é que se forjou de modo artificial, sob o influxo da mentalidade formalista de uma época (século XIX), uma ciência do direito autônoma, com características próprias, com método exclusivo, com objeto plenamente identificado e rotulado, nas mãos de Hans Kelsen, filósofo vienense responsável pela criação da mais conhecida obra da jusfilosofia do século XX, a Teoria pura do direito. Da perspectiva dessa obra, a ciência do direito possui como objeto único o estudo das normas jurídicas, desenraizadas de suas origens sociopolíticas, pois o jurista, nessa concepção, deve apenas ater-se aos aspectos formais dos processos de criação dos atos normativos, de delimitação das competências, de início e fim da vigência das regras jurídicas, de hierarquização dessas mesmas de modo escalonado e piramidal. Nesta proposta, o Estado é apenas a autoridade emanadora das normas jurídicas.

"A dimensão do que é jurídico aparece, então, claramente identificada como a dimensão formal das normas jurídicas, podendo-se alcançar na definição do Direito a preocupação única do direito por si mesmo. O Direito é discutido como um conjunto de normas jurídicas que regula a conduta humana. Não há, nesse tipo de definição, qualquer engendramento da questão do poder, da questão dos fins sociais das regras jurídicas, do mínimo ético como origem das regras jurídicas, ou qualquer fator alheio à própria dimensão do jurídico. Afinal, o que é o jurídico, com relação ao que é não-jurídico? Há diferença entre essas dimensões? Da perspectiva teórica do positivismo-normativista, o jurídico é o que foi definido pelo legislador como objeto de uma norma jurídica. Se a norma jurídica deixa de existir, o objeto por ela descrito deixa de ser jurídico. Se a norma jurídica incorpora um novo objeto, ele passa a ser jurídico. Então, o ato do legislador é o momento definitivo por meio do qual se confere vida jurídica aos objetos do mundo (relações humanas; relações comerciais...). Há, imanente a esse ato, a questão do poder de determinar o que é jurídico e o que é não-jurídico. Apesar de o poder estar presente, oculta-se sua importância, dissimula-se sua presença, fazendo-se o raciocínio jurídico partir da lei em diante. A reflexão jurídica, com Kelsen, perde seu relevo na dimensão do que é pré-normativo, do que é ante legem, resumindo-se ao estudo formal do que é posterior à norma, do que é post legem.

"O reducionismo metodológico do positivismo-normativista faz, portanto, do fenômeno jurídico um fenômeno isolado, sem causas, ou, ainda, cujas causas devem ser estudadas por outros cientistas, a saber, as causas sociais, pelo sociólogo, as causas éticas pelo eticista, as causas antropológicas, pelo antropólogo, as causas políticas, pelo cientista político. Ética, justiça e poder, elementos integrantes de todo ato jurídico, são, na definição de Kelsen, elementos estranhos ao estudo do jurista. A ciência do direito não pode invadir essas áreas sob o pretexto de estudá-las. A autonomia científica do Direito estaria abalada se as intromissões do jurista na ética, na sociologia, na ciência política... se tornassem habituais. Estão criadas as condições para a apatia do jurista diante das causas mais profundas e primeiras de todo ato normativo. Estão criadas as linhas de argumentação pelas quais se procura fazer do jurista um sujeito isento do processo de discussão dos fundamentos éticos e políticos da ordem jurídica."

Fonte: BITTAR, Eduardo C. B. Doutrinas e filosofias políticas: contribuições para a história das idéias políticas. São Paulo: Atlas, 2002. Pág. 25-27. Obs.: Foram removidas as notas de rodapé.


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