31 de março de 2008

As outras dengues

(Recebi por e-mail.)

Artigo publicado no jornal O Globo, no dia 29/03/2008
Cristovam Buarque*
www.cristovam.org.br

O Brasil está assustado com a epidemia de dengue que afeta atualmente diversas cidades brasileiras, especialmente o Rio de Janeiro. As autoridades trocam acusações e discutem de quem é a culpa. Mas poucos se lembram dos que avisaram que ela aconteceria. Foram muitos os médicos, epidemiologistas e políticos que avisaram, cobraram, denunciaram que o Brasil, especificamente o Rio, caminhava para a epidemia que hoje testemunhamos.

O risco de epidemias previamente anunciadas não se limita apenas ao quadro de saúde. Há décadas os ecologistas avisam, como muitos avisaram da dengue, que o desflorestamento da Amazônia é uma praga que destrói o meio ambiente. Mas esses avisos foram e continuam sendo ignorados. Alguns grupos - não apenas os conservadores de direita - chegam a reagir, dizendo que proteger a natureza é um atraso, porque o progresso se mede por árvores derrubadas e transformadas em madeira. Há vinte anos, um marxista brasileiro dizia que a preocupação com o meio ambiente era uma invenção do imperialismo para impedir o desenvolvimentismo do Terceiro Mundo.

Nós, brasileiros, somos os Aedes Egyptis da Amazônia.

Em São Paulo, já se sabe que, um dia, o trânsito da cidade vai parar de vez por causa do excesso de automóveis, mas cada vez se produz, compra, dirige mais. Mesmo sabendo que a epidemia de carros vai paralisar o organismo de cidade, como a dengue vai paralisar o organismo do doente.

A corrupção, as medidas provisórias, o vazio do Congresso são o mosquito que contamina a democracia. A política brasileira está com dengue, com a previsão de que em breve será hemorrágica, mas nada fazemos para interromper a marcha da epidemia que conduz ao autoritarismo explícito. Muito maior do que o atual autoritarismo das medidas provisórias em excesso e sem justificativa de urgência. Mas os alertas caem no vazio, como há algum tempo caía no vazio a denúncia do risco de dengue.

Há anos é anunciada uma epidemia de desemprego, não por falta de vagas, mas por falta de formação. Uma epidemia que poderá, inclusive, reduzir o ritmo do crescimento em diversos setores. Todos os dias, sobram - na indústria, na agricultura, na construção, nos serviços - vagas não preenchidas, enquanto milhões de pessoas desempregadas querem trabalhar, mas não possuem a qualificação necessária.

Nos últimos 50 anos, diversos políticos, como Brizola, alertaram e tentaram convencer o Brasil a dar importância à educação. Tudo indica que essa epidemia também vai se agravar, porque a educação não avança como deveria, e porque as exigências de formação crescem mais rapidamente do que a formação - que, quando é oferecida, é insuficiente, incompleta e não oferece a complexidade que os tempos de hoje exigem.

Todos sabemos que há muitas outras epidemias se preparando para eclodir no Brasil, mas vamos esperar para manifestar nossa indignação e, fingindo surpresa, culpar os outros: o ministro vai culpar o prefeito, o prefeito vai culpar o governador.

A pior de todas as epidemias é a falta de consciência da necessidade de um projeto comum para a nação. A epidemia de imediatismo e corporativismo, que provoca a omissão e legitima o esquecimento do futuro. Impede o investimento de hoje, para evitar o que só vai acontecer amanhã. É por isso que nenhum de nós se responsabiliza pelo resto do Brasil. Deixamos água empoçada e crianças sem escola - desde que não sejam as nossas. Como se os terremotos epidêmicos deixassem de pé somente a casa da gente, e as outras não importassem. Assim, o cidadão omisso e os governos oportunistas olham apenas os votos de hoje, e não para as doenças de amanhã. Recusam-se a exigir sacrifícios no presente para construir o futuro.

O imediatismo e corporativismo nos impedem de identificar a epidemia da ausência de capital-conhecimento: ela não provoca febre e dores em cada indivíduo infectado, como faz a dengue, mas ameaça ainda mais o futuro da economia e das famílias do Brasil.

* Professor da Universidade de Brasília, Senador pelo PDT/DF


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