5 de fevereiro de 2007

Sobre o conceito de democracia e outros devaneios

No sábado à noite, enquanto, por um lado, eu estava morto de cansaço devido ao fato de ter dado 8 horas de aula quase seguidas, e, por outro, via a chuva que me impediu de ir ao baile de formatura de um dos meus melhores amigos, assisti a um programa na Globonews chamado "Entre Aspas". O programa chamou minha atenção porque os participantes iriam debater sobre a democracia nos dias de hoje. E, como o tema "democracia" é uma das minhas principais áreas de pesquisa, lá fui eu ver o que os caras iam falar.

Participaram do debate um historiador e um sociólogo. Ambos falaram da importância da democracia nos dias de hoje. O historiador fez uma breve retrospectiva do conceito de democracia e lembrou que, em toda a história da chamada "civilização ocidental", o conceito de democracia só esteve presente entre os séculos VI e III a.C., entre os séculos I e IV d.C. e após a Revolução Francesa, em 1789. Ou seja, em um período relativamente longo, a democracia, em suas diversas variantes, esteve presente em curtos períodos de tempo.

Depois disso, o sociólogo começou a falar sobre o Fórum Social Mundial (FSM - tal historiador foi um dos organizadores do 1º FSM) e sobre a importância do FSM no processo de participação popular na definição dos rumos políticos de qualquer país. O sociólogo lembrou a importância de outros mecanismos de participação popular que não apenas o voto, tais como o plebiscito e o referendo, e defendeu a idéia de que iniciativas como o FSM são fundamentais para se garantir a representatividade da população junto à esfera política.

O historiador ressaltou, na mesma linha, a importância de se fortalecer o sistema democrático atual, já que a democracia, na visão dele, é a única boa maneira de se governar. Ele afirmou que a democracia brasileira ainda está em um estágio inicial, mas mesmo assim é necessário revitalizá-la. Afirmou também que é necessário fortalecer a democracia representativa, pois é por meio dela que a população consegue exercer o poder: segundo ele, "há coisas que devemos delegar a representantes, tais como a possibilidade de criar leis e administrar o país".

É aqui que o tema fica "interessante": infelizmente, a grande maioria os intelectuais já "jogou a toalha" e acredita que o único tipo de democracia possível é a democracia liberal, caracterizada principalmente, em primeiro lugar (como o próprio nome diz), pela delegação de poderes dos cidadãos de maneira geral para representantes eleitos democracitamente, e, em segundo lugar, pela alegada liberdade que todos temos ao escolhermos tais representantes. Se 1) Existe o direito ao voto; 2) Se tal voto é definido da maneira mais "livre" possível; e 3) Existem mecanismos complementares de expressão popular, como plebiscitos, referendos e liberdade de expressão (incluída aí a liberdade de imprensa), então a sociedade é democrática. Ou seja, ao afirmarem que é necessário aprofundar o modelo atual, tais pensadores apenas defendem, com palavras bonitinhas, a manutenção do status quo, ao invés de buscarem novas idéias que possam mudar a situação política atual.

Acredito ser óbvio para todos que estão lendo este blog a relação entre política e economia. Acho que é óbvio para todos que a situação econômica influencia a situação política, e vice- versa. Neste sentido, não é possível ignorar a relação entre infra-estrutura e superestrutura desenvolvida por Marx: o que acontece na esfera da economia traz reflexos para todas as demais esferas sociais, e estas, por sua vez, dão continuidade ao status quo na esfera da economia. Um círculo vicioso que, na visão de Marx, só terminaria com uma revolução proletária.

Mas não estou aqui para falar de revoluções (ainda não), e sim do fato de que seguir as idéias postuladas por Robert Dahl em seu texto Poliarquia é chover no molhado: acreditar que política e economia andam em lados opostos da rua é de ingenuidade tremenda. E ingenuidade maior ainda é ir à televisão e dizer que "do jeito que está não está bom, mas podemos melhorar fazendo mais do mesmo".

Será possível fazer mais do mesmo? Será que o leitor destas linhas, o leitor minimamente consciente, ainda acredita nos ideais positivistas de "ordem e progresso"? Será possível melhorar a situação de bilhões de pessoas no mundo mantendo-se a estrutura política e econômica atual? Ontem mesmo reli na Revista Época nº 454, de 29 de janeiro de 2007, à pág. 104:

"Em média, cada habitante da Terra dispõe de US$ 5.760 por ano, e a cada ano a economia mundial cresce 3%. No entanto, parece que somos mais eficientes em produzir riqueza que em distribuí-la, já que um cidadão de Luxemburgo dispõe de US$ 69.400 por ano, enquanto, no mesmo período, um cidadão do Burundi dispõe de apenas US$ 90."

Não questiono aqui a idéia, muitas vezes defendida por alguns pensadores, de que temos de mudar tudo de uma hora para outra. Bem que eu gostaria, mas isso é, obviamente, impossível. Também não estou aqui querendo ser contra a democracia (apesar de reconhecer que tenho uma veia didatorial e autoritária muito forte). Mas estou aqui criticando o fato de alguém ir para a TV e dizer "a coisa está ruim, mas não temos muito o que fazer além de garantir o que já temos". Acho um absurdo um dito "pensador" afirmar, com outras palavras, que "é a vida", e que temos de nos conformar com tal situação mesmo sabendo que tal situação é insustentável. E chama-me ainda mais a atenção por ser dizerem isto em relação ao nosso atual modelo democrático, que -- todos sabemos -- necessita urgentemente ser melhorado. E não apenas com reformas políticas, mas mudanças realmente paradigmáticas que possam fazer com que a humanidade dê um salto qualidativo, como fez durante os períodos das Revoluções Francesa e Russa.

Como exemplo da necessidade de mudança paradigmática, trago um exemplo que talvez já nem surpreenda por ser bem corriqueiro: os novos parlamentares tomaram posse na última quinta-feira, dia 1º de fevereiro. Até ontem, dia 4 de fevereiro, 22 parlamentares já haviam trocado de partido. Ou seja, em 3 dias 5% dos parlamentares já trocaram de camisa. Dá para alguém realmente se sentir representado deste jeito? Dá para alguém realmente acreditar que "é necessário fortalecer a democracia representativa"? Dá para acreditar no atual modelo de representação e de democracia mesmo quando os representantes dão mostras cabais de que não se preocupam com a população? Dá para acreditar que este modelo representativo vale alguma coisa quando, no dia seguinte à sua vitória, o presidente da Câmara, Arlindo Chinaglia, afirma que "lutará por teto salarial único nos 3 poderes", indiretamente afirmando (como confirmado hoje) que lutará pelo aumento de 91% dos salários?

Mudanças são necessárias. Quais mudanças, em qual rumo, em qual direção... Não sei. Ainda não sei. Mas o fato de não saber não me impede de criticar o modelo atual, de mostrar suas falhas e, mais que isso, de tentar conscientizar os demais de que é sim necessário fazer alguma coisa para acabar com tal situação. A questão do clima, tão debatida no momento, é um exemplo de que as pessoas precisam se unir e trabalhar em conjunto porque senão todas perdem. Espero um dia poder ver tal união também na política, pois o raciocínio é o mesmo -- se as pessoas não se conscientizarem de que algo precisa ser feito, todas irão perder.

É de se louvar as idéias de diversos pensadores que afirmam que a população pode pressionar e ter suas demandas satisfeitas quando se unem e fazem pressão sobre os governos, e é de conhecimento comum o fato de que a sociedade civil organizada, principalmente nos últimos quinze anos, conseguiu atingir objetivos e satisfazer demandas de maneira nunca antes feita. O fortalecimento da sociedade civil organizada, nos últimos quinze anos, comprovaria a eficácia das teorias que defendem a democracia liberal baseada em teorias pluralistas e em teorias de escolha racional. É possível, no entanto, fazermos a seguinte pergunta: e a sociedade civil “desorganizada”? E aqueles que não têm condições de participar de um movimento social qualquer? E aqueles que, antes de buscar a garantia de seus direitos -- que dirá a satisfação de suas demandas --, preferem -- ou melhor, precisam -- buscar a garantia do seu almoço? Análises pluralistas da política ignoram tais pessoas, mesmo sabendo da existência das mesmas e mesmo sabendo que elas correspondem a uma parcela razoável da sociedade dos países "em desenvolvimento". À pergunta “o que fazer com tais pessoas?” as teorias pluralistas e liberais não têm respostas.

Não há como garantir boas relações entre estado e sociedade, não há como aperfeiçoar modelos democráticos, não há como garantir a liberdade individual se a busca da igualdade -- social, política, econômica -- não for a base do pensamento político de qualquer partido, de qualquer governo, de qualquer indivíduo. Não adianta buscar melhorias dentro do sistema atual se o próprio sistema atual, como sabemos, se auto-reproduz, se perpetua, com a conseqüente perpetuação das desigualdades. Como diria Alysson Mascaro, em seu livro Filosofia do direito e filosofia política: a justiça é possível (pág. 18-19), “De que valerá poderem os africanos contar cada qual um voto, sendo que as grandes decisões do mundo se fazem nos gabinetes refrigerados das grandes multinacionais que não perguntam sobre vontade dos votos ou democracia?”

Claro que buscar um mundo melhor não é tarefa fácil nem simples, quanto mais atingi-lo, e há quem possa dizer que “o mundo é assim” e que, portanto, não há nada a fazer. Mas algo deve ser feito quando vivemos em uma sociedade extremamente desigual, como é o caso do Brasil, onde 4,7% da população (8 milhões de pessoas) vive com menos de um dólar por dia; onde 11,6% da população (20 milhões de pessoas) vive na indigência, com menos de um quarto de salário mínimo por mês; onde 30,6% da população (52,3 milhões de pessoas) é considerada pobre, vivendo com menos de meio salário mínimo por mês; e onde os 20% mais pobres (34,2 milhões de pessoas) possuem 4,2% da renda nacional, enquanto os 20% mais ricos se apropriam de 56,8% da renda nacional (dados do Instituto de Pesquisa Econômica Aplicada em 2004). Vale destacar que tais números são otimistas: de acordo com dados da Cepal, a porcentagem de pessoas que vive abaixo da linha de indigência é de 13,2%, ou aproximadamente 22,6 milhões de pessoas. Face a tal situação, perguntamos: será que os 20 milhões de brasileiros considerados indigentes pelo IPEA têm condições de se organizar em movimentos sociais e buscar uma melhor participação política? Será que os 52,3 milhões de brasileiros que vivem com menos de R$ 175,00 (cento e setenta e cinco reais, meio salário mínimo) por mês têm condições de exercer suas vozes em organizações não-governamentais com o objetivo de melhorar suas vidas? A “nova economia” do século XXI trouxe algum benefício para os indigentes e pobres? A resposta é óbvia para todos aqueles que tenham o mínimo de bom senso.

Para terminar: como disse antes, não tenho ainda a resposta a tais dúvidas. Mas se as pessoas se derem conta de tal situação e começarem a pensar sobre o assunto, quem sabe não surgirá alguma possibilidade de solucionar tal situação e melhorar a vida -- política, econômica e social -- da grande massa de excluídos do mundo inteiro... ?


Nenhum comentário: