6 de abril de 2007

Platão e Maquiavel

Há um tempo atrás, uma amiga minha, em momento de inspiração filosófica, deparou-se com diversos pensamentos sobre a questão do "ser" e do "dever ser", característica da antiga filosofia grega. Em outro momento, ela avançou um pouco na História e escreveu sobre Maquiavel. Eu, "bonzinho" como sou, escrevi no blog dela que a solução era fácil: bastava unir Platão com Maquiavel que todos seríamos felizes para sempre. Tal idéia, ao que me parece, deu um nó na cabeça dela, e eu fiquei devendo uma resposta. Pois aqui está a resposta.

Em primeiro lugar, devemos falar um pouco de Platão. Ele foi o criador do chamado método idealista (que, a partir do séc. XVI, passou a ser chamado de racionalista). Neste método, o filosofo raciocina sobre o que seria ideal para o mundo em que vive e, a partir deste ideal racionalmente criado, analisa o seu mundo. Se opõe ao método empirista, criado posteriormente por Aristóteles. Com base no idealismo, Platão faz uma distinção que é a base de toda a sua teoria: a diferença entre o mundo ideal (MI) e o mundo material (MM). O mundo material é, por definição, imperfeito. Corresponde ao mundo físico no qual vivemos. Este mundo é imperfeito porque tudo nele é criado pelo ser humano, que é imperfeito. Já o mundo ideal (MI) é perfeito: nele está o que Platão chama de “entidades”, que é a representação perfeita de tudo que existe no MM. O MI é perfeito porque ele é criado com base na razão, e a razão humana sempre está correta.

Por sua vez, Maquiavel é considerado o primeiro filósofo político moderno por se focar no que realmente existe, e não no que deveria existir. A preocupação central de Maquiavel em todas as suas obras é o estado, o estado real que de fato existe e é capaz de impor a ordem, não o Eetado idealizado que na verdade nunca existiu. O pensamento de Maquiavel vai de encontro com o idealismo de Platão, Aristóteles e Santo Tomás de Aquino e, por outro lado, caminha ao lado da concepção dos historiadores antigos como Tácito, Tucídides e outros. Seu fundamento central é a realidade concreta, a verdade efetiva das coisas. Sua regra metodológica consiste em examinar a realidade da forma que ela é e não da forma como gostaria que ela fosse, sua problemática central na análise política é o descobrimento da forma como poderia ser resolvido o inevitável ciclo de estabilidade e caos. Maquiavel garante que a ordem na política não é natural e sim deve ser construída pelo homem a fim de eliminar o caos.

Ora, se ambos autores são conceitualmente distintos, como é possível uni-los? Pego aqui a frase que minha amiga citou em seu blog: "Não é a intenção que valida um ato, mas sim o seu resultado". Ora, como minha amiga muito bem escreveu, sem dúvida alguma que as pessoas não avaliam a intenção de quem faz algo, mas sim o resultado (e eu sei muito bem do que estou falando: as pessoas geralmente analisam apenas meus atos, mas não as intenções dos mesmos). Neste sentido, a união de Platão com Maquiavel se faz justamente nesta frase: se conseguíssemos fazer com que nossas boas intenções (idéia associada ao mundo ideal de Platão) fossem postas em prática da maneira exata como pensamos, não precisaríamos nos preocupar com o "dever ser"; bastaria apenas "sermos", sem preocupação alguma com o que outros diriam/fariam, e o resultado de nossas ações estaria em conformidade com o que sabemos ser correto (idéias platônicas e kantianas ao mesmo tempo).

No entanto, não sou nenhum ingênuo. Sei que isto é pura filosofia, já que na prática não é bem assim -- que o diga a corretíssima separação entre "ética da convicção" e "ética da responsabilidade", que teve suas origens em Maquiavel mas foi academicamente desenvolvida por Weber no início do século passado. Mesmo assim, ainda acredito ser possível unir Platão e Maquiavel: tomemos as idéias do mundo ideal, perfeito, de Platão, e as coloquemos em prática usando os métodos de Maquiavel: o parecer ser. Talvez isto não seja eticamente correto de se dizer, mas é a realidade. Na minha visão, o indivíduo deve ter consciência do que é certo e o que é errado e, mais que isso, deve agir de maneira a concretizar apenas o correto; no entanto, para ter seus nobres objetivos atingidos, às vezes ele deverá "sujar suas mãos".

Não levem tais afirmações muito ao pé da letra: não afirmo que as pessoas devam sair fazendo o mal para atingir o bem. Dou um exemplo bem simples do que quero dizer com a seguinte situação. Um grupo de homens vê uma garota bonita passando na rua. Todos têm de dizer uns para os outros: "Como ela é gostosa", "Como ela é bonita" ou algo do tipo. Se algum não fizer um comentário deste tipo, muitas vezes será atormentado pelos outros. Então, para evitar aborrecimentos, o indivíduo que não está nem aí para a garota tem de falar "Sim, como ela é gostosa", evitando o aborrecimento. Ou seja, o indivíduo tem em sua consciência a idéia de que não é necessário falar que todas as mulheres são bonitas ou gostosas, mas o faz apenas para se ver livre dos aborrecimentos. Ele mantém suas idéias do "ser", mas age com base no "dever ser".

Para terminar este longo (e, talvez para alguns, confuso post), coloco dois parágrafos do texto do Maquiavel, que explanam o que estou falando.

A um príncipe, portanto, não é essencial possuir todas as qualidades acima mencionadas, mas é bem necessário parecer possuí-las. Antes, ousarei dizer que, possuindo-as e usando-as sempre, elas são danosas, enquanto que, aparentando possuí-las, são úteis; por exemplo: parecer piedoso, fiel, humano, íntegro, religioso, e sê-lo realmente, mas estar com o espírito preparado e disposto de modo que, precisando não sê-lo, possas e saibas tornar-te o contrário, Deve-se compreender que um príncipe, e em particular um príncipe novo, não pode praticar todas aquelas coisas pelas quais os homens são considerados bons, uma vez que, freqüentemente, é obrigado, para manter o Estado, a agir contra a fé, contra a caridade, contra a humanidade, contra a religião. Porém, é preciso que ele tenha um espírito disposto a voltar-se segundo os ventos da sorte e as variações dos fatos o determinem e, como acima se disse, não apartar-se do bem, podendo, mas saber entrar no mal, se necessário.

Um príncipe, portanto, deve ter muito cuidado em não deixar escapar de sua boca nada que não seja repleto das cinco qualidades acima mencionadas, para parecer, ao vê-lo e ouvi-lo, todo piedade, todo fé, todo integridade, todo humanidade, todo religião; e nada existe mais necessário de ser aparentado do que esta última qualidade. É que os homens em geral julgam mais pelos olhos do que pelas mãos, porque a todos cabe ver mas poucos são capazes de sentir. Todos vêem o que tu aparentas, poucos sentem aquilo que tu és; e esses poucos não se atrevem a contrariar a opinião dos muitos que, aliás, estão protegidos pela majestade do Estado; e, nas ações de todos os homens, em especial dos príncipes, onde não existe tribunal a que recorrer, o que importa é o sucesso das mesmas, Procure, pois, um príncipe, vencer e manter o Estado: os meios serão sempre julgados honrosos e por todos louvados, porque o vulgo sempre se deixa levar pelas aparências e pelos resultados, e no mundo não existe senão o vulgo; os poucos não podem existir quando os muitos têm onde se apoiar. Algum príncipe dos tempos atuais, que não convém nomear, não prega senão a paz e fé, mas de uma e outra é ferrenho inimigo; uma e outra, se ele as tivesse praticado, ter-lhe-iam por mais de uma vez tolhido a reputação ou o Estado.

Obviamente, Maquiavel fala sobre o governante e sua relação para com o estado. Platão também, quando faz suas análises, engloba o estado, já que na época em que viveu o estado era tudo. O ideal, creio, é unir as duas visões não apenas no que diz respeito a temas políticos, mas a tudo que acontece em nossas vidas.


2 comentários:

Káh disse...

Opa, vi que a minha birrinha de não comentar mais aqui teve resultado positivo :P

Mas Matheus, mesmo com esse teu post eu continuo com o meu pensamento sobre o "ser" e o "dever ser", como você mesmo, muito bem escreveu, mesmo "sendo" nós agimos pelo "dever ser", isso é um fato.
Sobre o mundo e justiça ideal de Platão, realmente é muito lindo, justo e harmonico, mas eu o vejo como uma mera ilusão. (Deve ser por essas e outras que o mundo não vai para frente, mas pensando de modo racional é assim como eu digo, ainda bem que sou brasileira e não desito). Concordo apenas com o mestre de Platão (Sócrates) e com a maiêutica que você desempenha muito bem.

Caramba, ja vi que eu sou uma "discipula" muito pentelha e agora vejo que minha personalidade não é fácil!

Beijão e obrigada por responder algumas das minhas questões querido professor!
ps: ótimo exemplo das "gostosas"

Sr R.Ninguem disse...

Parabéns, adorei o texto.