23 de abril de 2007

Yeltsin ajudou a empurrar a União Soviética para o abismo

(Por William Waack -- Original aqui)

Lembro-me bem de duas cenas que vivi com Boris Yeltsin. A primeira em 1992, numa escadaria dentro do Kremlin. O presidente russo descia os degraus meio trôpego, amparado por dois guarda-costas, quando se deparou com um grupinho de repórteres estrangeiros. Incitados por nós, os tradutores perguntaram ao presidente se ele estava bêbado. “Cheira aqui”, respondeu Yeltsin, abrindo a boca e apontando lá para dentro.

Outra cena inesquecível foi a da despedida das tropas do Exército Vermelho da então Alemanha Oriental. Era verão, fim de agosto, fazia muito calor e Yeltsin tinha tomado, digamos assim, alguns refrescos. Num jardim próximo à entrada principal da imponente embaixada russa, na Unter den Linden, ele viu a banda militar, pronta para executar os hinos da Rússia e da Alemanha. Camisa arregaçada, gravata frouxa, sem paletó, Yeltsin começou a reger a banda – para enorme constrangimento dos políticos alemães, muito preocupados em ver a solenidade do momento indo vodca abaixo.

Os russos, com seu peculiar espírito de humor, costumavam dizer que só mesmo Yeltsin reunia condições para mandar pra valer no Kremlin. Afinal, era um cabeludo, e a história recente do país ensinava que a alternância se dava entre carecas e cabeludos: Lênin (calvo quase careca), Stálin (densos cabelos negros), Kruschev (careca brilhosa), Brejnev (até as sobrancelhas eram grossas), Andropov (calvo até as orelhas), Chernenko (muitos cabelos brancos), Gorbachev (careca com mancha). Para tornar a piada um fato, é só observar que Vladimir Putin, o sucessor de Yeltsin, é careca.

Yeltsin sabia que o experimento de Gorbachev terminaria numa implosão. Mas decidiu não aguardá-la: foi um dos políticos de maior destaque no esforço coletivo de empurrar a União Soviética para o abismo. Não se pode dizer que ele tivesse, digamos, uma clara visão de futuro e de mundo. Era um tático, um dirigente acostumado a lidar com viradas súbitas de vento e a elas se adaptar.

Mesmo assim, subestimou dois fatores importantes. O primeiro foi o peso e a inércia de um sistema – o da economia de comando – que até hoje está bem dentro da cabeça de milhões de russos. Instituições políticas que acompanham uma economia de mercado, nas quais ele parecia acreditar com certa ingenuidade, não se constroem de um dia para o outro. Yeltsin mandou tanques bombardearem um Parlamento, em outubro de 1993, que lhe parecia excessivo em sua oposição à Presidência.

O segundo foi a impressionante rapidez com que o sistema de máfias e oligarquias, apenas mal encoberto pelo regime de partido único, tomou conta da Rússia num espetáculo único de rapinagem da propriedade “pública” (na verdade, já nas mãos de diversos grupos). Yeltsin presidiu sobre um período de acumulação primitiva de capital talvez não visto na história da Europa moderna.

Foi também quem decidiu enterrar, mais do que simbolicamente, um passado longínquo, mas sempre presente. Yeltsin admitiu que a família real russa havia sido exterminada por ordens de Lênin e mandou que as ossadas do Czar, sua mulher e seus filhos, descobertas em Yekatirenburg (onde Yeltsin fez boa parte da própria carreira política), fossem sepultados com grandes honras em São Petersburgo. Foi, por assim dizer, o funeral formal também do regime que ele ajudou a destruir.

Yeltsin parece ter sido menos ladrão do que muitas das figuras que o cercaram, inclusive alguns dos principais promotores de uma economia de mercado que enriqueceu inicialmente apenas a bem poucos. Ele cultivava uma genuína desconfiança em relação ao “aparato”, especialmente seus serviços secretos. É provável que aí tivesse cometido seu principal erro.

Lembro-me, ainda dos tempos de Yeltsin, de conversas em Moscou com integrantes e ex-integrantes do “aparato” e dos “órgãos”, como era conhecida a teia de serviços secretos. Yeltsin era por eles criticado não pela dissolução da URSS – que os inteligentes da KGB sabiam ser inevitável – mas, sim, por não tê-los imediatamente aproveitado no período após a implosão. Afinal, queixava-se um desses ex-integrantes, um coronel da KGB com mais de 30 anos de serviços à pátria, “só nós sabemos como administrar este imenso país, somos a elite de gerenciamento”.

Putin foi a resposta deles a Yeltsin.


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